Desde o advento da insulina, há pouco mais de 100 anos, os cuidados com o diabetes nunca estiveram amparados em um arsenal tão vasto de invenções capazes de tornar mais simples, assertiva e bem-sucedida a missão de evitar a sobrecarga de açúcar no sangue, um fenômeno que boicota a expectativa e a qualidade de vida. Vive-se, sem exagero, uma década de ouro, com aliados tecnológicos que vão de dispositivos para monitorar a glicose sem as incômodas picadas nos dedos a bombas automáticas que checam e liberam a insulina de forma inteligente, passando por ferramentas que permitem compartilhar os dados do paciente com o médico em tempo real e medicamentos inovadores que, de uma tacada só, freiam a glicemia e ajudam na perda de peso. Potenciais beneficiários dessas inovações, testadas e validadas por uma série de estudos, não faltam. Falamos de uma população de 828 milhões de adultos com diabetes no mundo, 22 milhões deles só no Brasil — um dos maiores problemas de saúde pública da atualidade.
Nos últimos meses, foi anunciada uma nova geração de recursos que auxiliam a rotina de controle da doença, mirando tanto pessoas com diabetes tipo 1, a versão autoimune e normalmente detectada na infância ou juventude, como as com diabetes tipo 2, a mais prevalente, ligada ao ganho de peso e ao avançar da idade. Entre os lançamentos, desponta a evolução do dispositivo de leitura de glicose Free-Style Libre, da americana Abbott, que dispensa furos nos dedos para realizar o monitoramento. O equipamento consiste em um sensor instalado na parte de trás do braço que acompanha continuamente as taxas de açúcar no corpo durante quinze dias. O Libre 2 é uma atualização do primeiro medidor do gênero, lançado em 2016, e agora conta com sistema Bluetooth que disponibiliza os dados na tela do celular, sem a necessidade de escaneamentos no sensor. Além disso, dispõe de um alerta sonoro que avisa o paciente em caso de descompensações, às vezes silenciosas. “Quando comparamos com as décadas anteriores, vemos um grande salto em termos de tecnologia, inclusive com a interação entre aplicativos e o uso de inteligência artificial”, diz Paulo Miranda, presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia.
Muito mais do que livrar os dedos dos furos para aferir o açúcar, o dispositivo apresentou vantagens impressionantes em um estudo sueco com 11 822 pacientes, recém-publicado no periódico da Associação Americana de Diabetes (ADA, na sigla em inglês). Houve uma redução expressiva na admissão hospitalar relacionada a complicações do desequilíbrio glicêmico no curto e no longo prazo, caso da cetoacidose, uma emergência potencialmente fatal, da doença renal, da insuficiência cardíaca, do infarto e do acidente vascular cerebral (AVC).
No campo dos avanços, brasileiros que dependem de injeções frequentes de insulina poderão tirar proveito de um novo sistema integrado que, além de averiguar os níveis de glicose, libera, de forma automática, doses do hormônio, facilitando a vida do paciente. Criada pela Medtronic, a bomba de insulina acoplada a um sensor MiniMed 780G representa um alívio principalmente a crianças e adolescentes com diabetes tipo 1, que precisam ser acompanhados de perto pelos pais no cotidiano de medições e aplicações do medicamento. Nesses casos, não bastasse o temor de o açúcar disparar, paira o fantasma da hipoglicemia, quando o combustível das células despenca e o indivíduo pode até desmaiar. “Essa tecnologia é fantástica no período da madrugada, porque evita oscilações prejudiciais durante o sono, nem sempre percebidas”, diz Carlos Eduardo Barra Couri, endocrinologista e pesquisador da USP de Ribeirão Preto.
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TEMPO REAL – Acompanhamento contínuo: bomba de insulina permite controle mais fino e efetivo da doença (//Divulgação)
Já no público mais maduro que convive com o diabetes, sobretudo o tipo 2, um dos desafios é que, além de conter a doença, é preciso manejar outras condições que costumam aparecer em paralelo. A hipertensão é duas vezes mais prevalente nesse contexto, uma combinação de enfermidades que eleva em mais de sete vezes o risco de morte precoce. Para complicar, o diabetes desata um processo de rigidez nas artérias, dificultando a medição da pressão. Diante dessa sinuca, acaba de ser apresentado no país o primeiro aparelho que afere esse índice validado para o público com a doença. O monitor Omron Progress segue o padrão internacional elaborado por sociedades médicas de hipertensão e promete trazer mais acurácia ao plano de cuidados em prol do sistema cardiovascular.
Tecnologias que já fazem parte do dia a dia e que são mais acessíveis à população em geral, como a telemedicina, são igualmente importantes na luta contra o diabetes. E até quem torce o nariz para as consultas a distância deve rever sua percepção a respeito. Um estudo clínico conduzido pela equipe do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, comparou 246 atendimentos médicos remotos e presenciais realizados pelo SUS em Joinville (SC), entre 2020 e 2023. O experimento demonstrou impactos positivos não só econômicos, mas para o próprio controle da doença — os exames dos participantes via telemedicina estavam melhores do que aqueles do grupo padrão. O custo com a consulta presencial foi 7,7% maior e chegou a um valor 15% mais caro quando considerada a necessidade de se deslocar para outro município. Um dos fatores que pesam é o transporte e, em um país com tantas desigualdades, é possível compreender que isso significa absenteísmo, que chega a 25% na atenção especializada. O resultado é menos adesão ao tratamento e taxas mais baixas de acompanhamento. “Pessoas que demorariam a marcar a consulta passam a ser avaliadas mais assiduamente com a telessaúde, e isso repercute no engajamento e no resultado dos cuidados”, afirma Couri.
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CUSTO-BENEFÍCIO - Adesão: telemedicina reduz gastos e melhora exames (E+/Getty Images)
Entre os progressos do ano, é impossível não citar as canetas de semaglutida e tirzepatida — representadas por Ozempic (Novo Nordisk) e Mounjaro (Eli Lilly) — que revolucionaram o tratamento ao destronar o alvo único e absoluto na glicose e passar a abranger também o controle de problemas que andam de mãos dadas com o diabetes, como excesso de peso, gordura no fígado e doenças cardíacas. E os próximos capítulos soam ainda mais promissores, não só com remédios potentes mas também com terapias celulares capazes de levar o diabetes tipo 1 à remissão.
O banho de água fria diante desse movimento high-tech é a constatação de que a doença segue em ritmo crescente mundo afora, na esteira da obesidade, da má alimentação e do sedentarismo. O último levantamento do periódico The Lancet, que reúne dados de mais de 1 000 estudos, aponta que o número de pessoas que vivem com a enfermidade dobrou desde 1990, e 59% dos pacientes não estão recebendo tratamento. Outro gargalo é o acesso às inovações, restrito, ao menos em um primeiro momento, a quem pode pagar. Felizmente, a tendência, como ilustra a telemedicina, é a democratização do cuidado apoiado em tecnologia. Esse é um futuro incontornável — e ele já começou.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921