Garantir cuidados de saúde no Brasil, um país que impressiona pelo seu tamanho, diversidade, beleza e, ao mesmo tempo, entristece pela desigualdade social, é um desafio que não pode ser ignorado. Há cinco anos, completados e celebrados em novembro de 2024, criamos a ONG Zoé com o propósito de levar saúde especializada para a região amazônica, onde essa vastidão e complexidade ficam ainda mais evidentes. Nesses cinco anos, médicos experientes, profissionais de saúde e estudantes de medicina do Brasil e do exterior, todos voluntários da Zoé, realizaram 31 expedições e 10.840 atendimentos no estado do Pará, mais especificamente, nas regiões ribeirinhas dos rios Tapajós e seus afluentes e do Baixo Amazonas, nos municípios de Belterra, Aveiro, Santarém e Óbidos.
Em dezembro passado, desembarcamos em Santarém para nossa última expedição de 2024, das oito realizadas no ano e, por mais que estivéssemos atualizados sobre as notícias das queimadas que castigavam a região, foi muito impactante para todos nós da expedição, pela primeira vez, não conseguir ver o céu azul que sempre nos recebe. No lugar do azul pairava o cinza sob um céu encoberto pela fumaça das queimadas, a maioria ligada ao desmatamento ilegal na Amazônia. O cheiro de fuligem no ar esteve presente durante os cerca de 10 dias da expedição.
A fumaça teve impacto em nosso trabalho com grande parte dos pacientes apresentando queixas respiratórias e também afetou a saúde dos expedicionários. Apesar disso, conseguimos fazer, praticamente, o dobro de atendimentos previstos graças à motivação da equipe, o apoio local e o carinho e determinação de pacientes que, muitas vezes, enfrentam horas ou um dia inteiro de viagem por meios fluviais e terrestres para chegar ao Hospital Municipal de Belterra (HMB), onde nossa equipe os aguardava. Assim, somente na 31ª expedição foram 783 atendimentos, dos quais 287 consultas, 397 exames e 99 cirurgias. Além disso, fizemos treinamentos de suporte básico de vida e primeiros socorros no HMB e em comunidades ribeirinhas.
+Vazio de atendimento à saúde na Amazônia precisa ser preenchido
Iniciativas como as da Zoé complementam os serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), contribuindo para reduzir filas e aliviar a ansiedade de quem aguarda atendimento médico. Não raro é a única chance de acesso mais rápido a uma cirurgia ou um exame de imagem essencial para o diagnóstico de uma doença antes que ela se agrave ainda mais. No entanto, a realidade da saúde em áreas remotas, especialmente na Amazônia, revela desafios imensos que precisam ser enfrentados com políticas públicas formatadas especificamente para essa realidade singular.
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Com uma área equivalente a sete vezes o território da França, a Amazônia enfrenta dificuldades agravadas por sua baixa densidade populacional. A região cobre quase 60% do território brasileiro, somando mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, mas abriga apenas 13% da população do país. Com uma densidade demográfica de 5,6 habitantes por quilômetro quadrado, esses números refletem um cenário desafiador, especialmente nas comunidades ribeirinhas espalhadas ao longo dos rios.
A prestação de serviços de saúde é prejudicada pelas longas distâncias, limitações de transporte e falta de profissionais especializados. No estado do Pará, por exemplo, há apenas 1,1 médico por 1.000 habitantes, muito abaixo da média recomendada mundialmente. Esse contraste é evidente quando comparado ao Distrito Federal, onde há 5,4 médicos por 1.000 habitantes.
A dificuldade de fixar médicos em áreas remotas do Brasil, como a região amazônica, está diretamente ligada às condições limitadas de atendimento, falta de infraestrutura hospitalar e insuficiência de ensino e apoio educacional às famílias locais. Uma possível solução para esse problema poderia envolver a melhoria das condições de trabalho e moradia, associada a um plano de carreira similar ao aplicado no Judiciário. Esse modelo ofereceria incentivos para que os profissionais se estabelecessem de forma permanente em localidades carentes.
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É evidente que a abertura descontrolada de novas faculdades de medicina não solucionará os problemas estruturais e de acesso à saúde nessas áreas. A solução exige esforços coordenados para oferecer suporte adequado e atrair profissionais qualificados para regiões remotas do Brasil.
A cada expedição, conhecemos mais da complexidade da região em relação saúde e, apesar de sabermos que nosso trabalho é importante, assim como de outras tantas ONGs que atuam em saúde na região, estamos longe de ser a solução para o problema. Por outro lado, podemos ser a inspiração para desenvolver um projeto maior – envolvendo os setores público e privado – para resolver o problema de acesso à saúde cada vez mais latente na Amazônia.
*Marcelo Averbach, cirurgião e presidente da ONG Zoé