O Brasil está diante de uma transformação alarmante em seu perfil epidemiológico. O câncer, uma doença historicamente associada a nações mais desenvolvidas, avança rapidamente em nosso país, refletindo mudanças sociais, econômicas e culturais. Dados recentes do The Lancet – Regional Health Americas trazem um alerta contundente: entre 2000 e 2020, o câncer saltou de causa de morte em 7% dos municípios para 13%, posicionando-se como a segunda maior causa de mortalidade no Brasil e ameaçando ultrapassar as doenças cardiovasculares.
Esses números não são apenas frios indicadores estatísticos. Representam famílias devastadas, desafios crescentes para o sistema de saúde e um chamado urgente à mobilização coletiva. O câncer não é uma doença única — trata-se de um grupo heterogêneo de mais de 200 tipos de tumores que exigem abordagens diagnósticas, terapêuticas e preventivas personalizadas. Essa complexidade exige mais do que tratamento: requer uma revolução na forma como o Brasil encara sua saúde pública.
A prevenção como alicerce
Pelo menos um terço dos casos de câncer pode ser prevenido. Esta não é apenas uma boa notícia, mas um sinal de que a mudança está em nossas mãos. Tabagismo, consumo de álcool, dieta inadequada, sedentarismo e exposição a fatores ambientais como poluição são determinantes diretos no aumento do risco de câncer. No entanto, a responsabilidade pela prevenção não deve recair apenas sobre o indivíduo.
Políticas públicas eficazes são indispensáveis. A bem-sucedida regulação do tabaco, que resultou em uma redução expressiva nos índices de câncer de pulmão, é um exemplo de como intervenções governamentais podem salvar vidas. Precisamos adotar estratégias semelhantes para combater os efeitos dos alimentos ultraprocessados e promover ambientes que favoreçam escolhas saudáveis.
A recente aprovação da Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer é um marco promissor, mas ainda insuficiente. Medidas práticas, como o incentivo a programas de vacinação contra HPV e hepatite B, ampliação do acesso ao rastreamento e regulamentação de práticas alimentares nocivas, devem ser priorizadas.
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O peso das desigualdades
Não podemos ignorar o impacto das desigualdades socioeconômicas na luta contra o câncer. Enquanto municípios mais ricos avançam no diagnóstico precoce e acesso a terapias inovadoras, regiões carentes ainda sofrem com a falta de infraestrutura básica de saúde. A transição epidemiológica no Brasil, que desloca a carga de doenças infecciosas para crônicas e degenerativas, expõe a profunda vulnerabilidade de populações desfavorecidas.
O câncer, nesse contexto, torna-se não apenas uma questão de saúde, mas também de justiça social. O acesso a informações, exames diagnósticos e tratamentos deve ser um direito universal, não um privilégio. É imperativo que políticas públicas combatam essas desigualdades de maneira ativa e assertiva.
Esperança na ciência e na ação coletiva
Embora o cenário seja desafiador, há motivos para otimismo. Avanços científicos têm transformado o panorama do câncer, com terapias-alvo, imunoterapia e medicina de precisão, oferecendo perspectivas inéditas para pacientes. Além disso, iniciativas intersetoriais, que integram governo, setor privado e sociedade civil, têm mostrado resultados promissores em outras áreas da saúde e podem ser adaptadas para o controle do câncer.
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A luta contra o câncer requer uma abordagem multidisciplinar e integrada que priorize:
Prevenção e educação: campanhas massivas para conscientização sobre fatores de risco e estilos de vida saudáveis
Diagnóstico precoce: ampliação do acesso ao rastreamento populacional para tipos prioritários de câncer, como mama, colo do útero e intestino
Tratamento equitativo: expansão de centros especializados em regiões menos favorecidas
Regulação eficaz: maior controle sobre produtos e práticas que contribuem para o aumento do risco
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O câncer é, sem dúvida, um adversário complexo, mas a união de esforços pode transformar essa realidade. Cada cidadão, instituição e profissional tem um papel essencial nessa jornada. Que esta reflexão inspire não apenas debate, mas ações concretas e sustentáveis para mudar o rumo dessa história.
*Carlos Gil Ferreira é oncologista, diretor médico da Oncoclínicas e presidente do Instituto Oncoclínicas