Você já teve a oportunidade de conviver com uma criança no espectro autista? Se a resposta for sim, deve ter notado que situações cotidianas, que muitos consideram triviais, podem representar desafios significativos. Momentos que ocasionalmente geram desconforto para qualquer um são frequentemente mais complexos de gerenciar para pessoas com autismo. As férias exemplificam como relações sociais intensificadas podem aumentar o estresse e potencializar alguns quadros.
O autismo é uma condição comportamental caracterizada por dificuldades nas interações sociais e na comunicação. Comportamentos repetitivos e dificuldades com linguagem, especialmente a simbólica, são comuns. Além disso, aspectos como interesses restritos, ansiedade, e desafios sensoriais (principalmente sonoros, táteis ou alimentares) podem se tornar mais difíceis de manejar durante os períodos de férias. Embora muitos adultos no espectro desenvolvam habilidades ao longo do tempo que amenizem essas características, permitindo uma melhor interação social e maior funcionalidade, algumas atividades sociais comuns podem continuar a ser desafiadoras.
Para crianças no espectro, muitas habilidades sociais ainda estão em formação e a falta de repertório emocional amplo para lidar com situações fora da rotina podem tornar um simples passeio ou viagem de férias verdadeiramente complexas. Diante do novo, surgem muitos desafios. Ao sair de casa, a criança no espectro se expõe ao contato com outras pessoas, alimentos e ambientes desconhecidos. Situações de maior interação social, como receber ou visitar familiares, que exigem iniciar e manter conversas e requerem foco, podem gerar desequilíbrio emocional em ambientes mais agitados que o habitual.
A busca por previsibilidade em situações incertas ou mesmo para tentar controlar a ansiedade, pode causar a repetição persistente de pensamentos, perguntas ou sequência de movimentos, que configuram um evento chamado de “looping”. Envolve um foco intenso e repetitivo em um tema ou ação, que pode ser difícil de interromper sem ajuda. Aqui estão algumas estratégias para você minimizar ou até encerrar um looping.
Redirecionamento gentil: Introduzir de forma suave um novo tópico ou atividade que interesse à criança. Isso vai ajudá-la a desviar o foco do looping
Ambiente tranquilo: Reduzir estímulos sensoriais no ambiente, como luz intensa ou ruídos, para diminuir a sobrecarga sensorial
Técnicas de respiração: Incentivar exercícios de respiração profunda para ajudar a acalmar
Ferramentas visuais: Utilizar quadros ou cartões visuais que ajudem a pessoa a compreender e seguir uma sequência de atividades, desviando o foco do looping
Atividades físicas: Incentivar a prática de atividades físicas leves, como caminhadas ou alongamentos, que podem ajudar a liberar tensão e redirecionar a energia
Apoio de um objeto confortável: Oferecer um objeto de conforto, como um brinquedo sensorial ou um item preferido, para proporcionar segurança e distração
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Quando o estímulo é intenso demais, o estresse pode desencadear uma crise de ansiedade, normalmente chamada de sobrecarga sensorial. Essa reação ocorre quando o cérebro fica sobrecarregado de informações e é incapaz de processá-las adequadamente. Durante um período que pode durar de alguns minutos a várias horas, podem ocorrer choro, gritos e descontrole físico, com movimentos repetitivos e descoordenados. Em alguns casos, o descontrole físico pode ser intenso o suficiente para causar agressão física a si ou a outras pessoas.
É importante diferenciar, entretanto, os movimentos de autoestimulação de uma verdadeira autoagressão. É relativamente comum que pessoas no espectro realizem pequenos movimentos de autoestimulação, como bater nas pernas, mãos ou no chão, mas geralmente essas ocorrências são de menor intensidade que autoagressão propriamente dita.
Um aspecto crucial a ser mencionado é a abordagem da contenção. Deve-se evitar ao máximo conter crianças no espectro autista usando a força, pois essa prática tende a causar mais trauma do que benefícios, frequentemente resultando em quebra de confiança, que é difícil de restaurar. A contenção deve ser reservada apenas para situações de agressão realmente intensa a si ou a outras pessoas, quando outras medidas mais apropriadas tiverem sido realizadas sem sucesso. A melhor maneira de lidar com picos de estresse é oferecer opções para que a criança expresse suas emoções, muitas vezes de forma lúdica e em um ambiente seguro e de menor intensidade sensorial.
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No contexto de viagens de férias, as exposições a novas situações podem ser ainda mais complexas de gerenciar. Se o objetivo for proporcionar novas experiências, é crucial estar preparado para momentos de estresse emocional. Programas e passeios em lugares muito remotos, onde não é possível aliviar rapidamente esse estresse, representam um risco maior. No entanto, algumas estratégias podem ajudar a planejar férias bem-sucedidas com esse propósito:
Planejamento antecipado: Destacar a importância de conhecer novos lugares e pessoas. Planejar atividades e viagens com antecedência, ajudam a reduzir a ansiedade e a insegurança em relação ao inesperado
Estabelecer uma rotina visual: Criar um calendário que inclua os dias que antecedem a viagem, com a descrição das atividades que serão feitas neste período, como arrumar as malas ou comprar artigos, roupas. Incluir também as atividades e passeios que estão previstos. É importante a criança visualizar o que a espera na viagem
Incluir interesses especiais: caso a criança tenha temas de maior interesse, o que é frequente no autismo, você deve incluir na programação da viagem interesses especiais. Exemplo: um passeio de trem ou uma visita a um museu sobre o tema
Atividades personalizadas: Permitir que a criança no espectro autista escolha as maneiras mais confortáveis de interagir com novos ambientes
Espaço de descanso: Planejar momentos e ambientes mais tranquilos durante a viagem, onde a criança possa permanecer, se estiver se sentindo sobrecarregada
Agenda de atividades: Fazer uma agenda com o roteiro da viagem ajuda a reduzir o estresse de visitar lugares novos e favorece a integração com atividades variadas, e o padrão de organização visual é bem aceito mesmo por crianças no espectro.
Manter parte das atividades que são feitas em casa no período de férias pode ajudar a reduzir o estresse e a ansiedade que a quebra da rotina pode causar. Também é fundamental manter o tempo de tela sob controle. Com mais tempo livre, há uma tendência de aumentar a imersão da pessoa no espectro em seu próprio mundo, diminuindo as interações sociais, especialmente em famílias que não têm o mesmo período de férias que as crianças. Isso também se aplica a outros estímulos que são difíceis de controlar. Por exemplo, se há uma preocupação com alimentos específicos que estão mais acessíveis, como doces, é melhor removê-los durante o período de férias, evitando o estresse do estímulo.
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Embora possa parecer desafiador, o período de férias pode ser altamente benéfico para melhorar diversos aspectos da vida de uma criança com autismo. Com dicas práticas e simples, a viagem de férias em família pode ser mais fácil e transformadora. Existe um reconhecimento crescente da importância de criar ambientes e iniciativas inclusivas, e muitas ações estão sendo desenvolvidas, no Brasil e no exterior, para acolher a criança no espectro em atividades adaptadas. Muitos parques, centros culturais, aquários, zoológicos, hotéis, cinemas e parques temáticos já oferecem programas voltados para esse acolhimento. Essas medidas não apenas reforçam a importância dessas atividades para o desenvolvimento da pessoa no espectro autista, mas também refletem o compromisso da sociedade em se tornar mais acolhedora e inclusiva. Com planejamento e compreensão, as férias podem se tornar uma experiência enriquecedora para todos.
* Guilherme de Abreu é pediatra, neonatologista e especialista em Transtornos de Desenvolvimento