A doença falciforme é uma das condições genéticas mais comuns no mundo – e também uma das mais negligenciadas. Com cerca de 2 a 3 mil novos casos diagnosticados a cada ano, estima-se que entre 60 mil e 100 mil brasileiros convivem com o problema. No entanto, a falta de informação e o preconceito ainda tornam essa jornada extremamente desafiadora para os pacientes.
Originária do continente africano, a doença falciforme chegou ao Brasil há cerca de 200 anos. Como resultado, ela tem maior incidência e prevalência entre os indivíduos afrodescendentes. No entanto, devido à nossa intensa miscigenação, pessoas de fenótipo branco (aparência branca) também podem carregar o gene da doença.
A doença falciforme é uma condição hereditária que afeta a hemoglobina, proteína presente nas hemácias (glóbulos vermelhos) e responsável pelo transporte de oxigênio no corpo. Ao invés do formato arredondado usual, esses glóbulos vermelhos do sangue assumem uma forma mais alongada, que lembra uma foice, daí o nome de anemia falciforme. Esta forma alongada dificulta sua circulação nos vasos sanguíneos, podendo pode causar:
● Anemia crônica, devido à menor sobrevida das hemácias;
● Episódios de dor intensa;
● Risco elevado de AVC, infarto e insuficiência renal;
● Complicações pulmonares e cardíacas graves, entre outras.
As crises dolorosas são um dos aspectos mais debilitantes da doença. Elas ocorrem quando as hemácias em formato de foice bloqueiam o fluxo sanguíneo, impedindo a oxigenação adequada dos tecidos. A dor intensa frequentemente exige internações e o uso de analgésicos potentes, como a morfina. Em muitos casos, os pacientes precisam de atendimento em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) para controle adequado da dor.
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Embora existam programas do Ministério da Saúde voltados para os pacientes com doença falciforme, o acesso ao tratamento ainda é desigual. Muitos dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS), que enfrenta desafios como alta demanda e escassez de recursos, especialmente em regiões mais periféricas do país.
Hoje, a única cura definitiva para a doença é o transplante de medula óssea, um procedimento complexo e de acesso limitado. A terapia gênica surge como uma esperança no cenário médico, mas ainda se encontra em estágio inicial e restrita no Brasil.
Além das complicações físicas, os pacientes com doença falciforme enfrentam um obstáculo silencioso e cruel: o racismo estrutural. Por ser mais prevalente em pessoas negras e, automaticamente, de classes socioeconômicas menos favorecidas, a doença falciforme sofre com a falta de visibilidade e de investimentos adequados. Muitos pacientes relatam preconceito até mesmo dentro do próprio sistema de saúde, enfrentando desconfiança sobre sua dor e demora no atendimento.
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O papel da informação e da conscientização é fundamental para dar voz a esses pacientes. Vivenciar o dia a dia dessas pessoas, que muitas vezes não sabem o que fazer quando recebem o diagnóstico de doença falciforme, me fez fundar a ONG Lua Vermelha com o intuito de mudar esse cenário.
Há 13 anos, trabalhamos com o desafio de combater o desconhecimento e o estigma, garantindo que esses indivíduos sejam vistos, acolhidos e tenham acesso a um atendimento digno e eficaz.
A doença falciforme não pode mais ser invisibilizada. Dar voz e conhecimento a esses pacientes, seus familiares, cuidadores e profissionais envolvidos é um passo essencial para transformar a realidade da doença no Brasil, garantindo que a dor, o preconceito e a negligência sejam substituídos por empatia, tratamento adequado e políticas públicas eficazes.
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* Marimilia Pita é hematologista pediátrica do Hospital Samaritano de São Paulo e fundadora da ONG Lua Vermelha
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