Há 36 anos realizo transplantes de córnea. Um orgulho da minha trajetória profissional foi ter criado um dos primeiros bancos córneos do Brasil. Por isso, recebi com preocupação o levantamento produzido pelo Conselho Brasileiro de Oftalmologia (CBO) e divulgado no início deste mês, dando conta de que o número de pacientes na fila de espera por um transplante de córnea praticamente triplicou nos últimos dez anos: de 10.7 mil pessoas, em 2014, saltamos para 28,9 mil, em 2024. Hoje, a média de espera para a realização desse transplante é de 194 dias, pouco mais de seis meses.
Os números que me deixaram apreensivo têm muito a ver com a pandemia de covid-19, quando os hospitais suspenderam ou diminuíram drasticamente os procedimentos eletivos, provocando o inchaço da fila de espera. Com efeito, o aumento expressivo foi registrado entre 2019 e 2020, quando o crescimento da fila chegou a 30%. Mas o fenômeno tem relação com a baixa conscientização do público sobre importância da doação de órgãos e passa também por uma melhora geral na gestão do ecossistema de transplantes.
O Sistema Nacional de Transplantes (SNT), órgão do Ministério a Saúde, por meio da Coordenação-Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), é quem monitora a lista dos pacientes à espera de um transplante. A lista é única por Estado e respeita a ordem de inscrição, mas casos urgentes ou graves têm prioridade. Além disso, a CGSNT faz o controle do processo de captação e distribuição de órgãos, tecidos e células-tronco hematopoéticas para fins terapêuticos.
A doação de córnea só possível após o falecimento e precisa ser autorizada pela família do doador. A captação deve ocorrer entre seis e 12 horas após a parada do coração. A técnica cirúrgica para a sua retirada não deixa vestígios nem altera a aparência.
O Sistema Único de Saúde (SUS) começou a cobrir os transplantes nos anos 1990, com a criação do SNT, tornando os procedimentos acessíveis a quem deles necessita, independentemente da situação financeira. O número de cirurgias do gênero cresceu desde então. Em termos absolutos, o Brasil é o segundo maior executor de transplantes do mundo, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.
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O país tem uma rede organizada, mas que necessita de aperfeiçoamentos e investimento a fim de solucionar gargalos e dar conta da demanda. Há que se resolver, por exemplo, as assimetrias. Há uma disparidade significativa na oferta e demanda de transplantes entre regiões do Brasil. Em determinadas áreas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, por exemplo, os desafios logísticos são significativos e há carência de hospitais especializados na captação dos órgãos e no transplante. Nem todos têm as condições necessárias para realizar os procedimentos, como equipes médicas especializadas e centros de captação de órgãos.
O país conta hoje com 651 equipes treinadas para realizar transplantes de córnea, distribuídas por 249 serviços habilitados. Essas equipes estão em todos Estados, mas maioria se concentra no Sul e no Sudeste. Outra demanda crucial diz respeito ao valor dos repasses do SUS para os hospitais que realizam as cirurgias. Esse financiamento, hoje subdimensionado, é determinante para o aumento a capacidade de atendimento.
Por fim, é necessário investir pesado em campanhas de conscientização para população sobre a importância da doação de órgãos, sobre como proceder para fazer a doação e como essa atitude pode transformar e salvar vidas. Infelizmente, questões que envolvem a doação, como morte encefálica, por exemplo, ainda hoje estão envoltas em mistificações e desinformação.
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